quarta-feira, abril 24

O primeiro conto que ainda não tem título - Capítulo 1


1 – In media res

O mais intricado dos problemas é dar a conhecer o início. Como eu não sei onde começo, abro esta página com um dia de sol no Jardim da Estrela, porque as pessoas gostam de sol e jardins e pássaros no céu. Eu cá gosto de compreensão, coisa que nunca se me deu a conhecer. Não entendo a vida, a sociedade, a arrumação, a mente humana e principalmente a minha. Em conversas com algumas pessoas sinto, por vezes, um breve entendimento pelo que elas passam ou foram passando na sua estadia em Terra. Mas é uma demasiada complexidade que não tem forma de ser partilhada, quando nem consegue ser explicada, porque a vida é uma prisão. Gostam de apregoar sobre o amor e as suas virtudes. Eu não gosto de amor e acredito que só o vou conhecer na forma pura - sem ser em molde de obsessão – quando encontrar quem me leia por inteiro e me traduza. Mas o amor que eu encontro é sempre cheio de códigos ou páginas brancas. Prefiro deitar-me na relva com um cigarro e imaginar que os meus olhos são uma câmara de filmar, porque a vida é mais bonita assim. Folhas pequeninas de um Jacarandá a balancearem com o vento, enquanto que no pano de fundo as nuvens correm para o seu destino. Ao menos elas têm um. Tomara eu que o meu destino fosse a infinitude do Universo, ao menos teria um propósito maior do que viver porque é suposto. Fico-me pelos jardins, mas já é hora de voltar à vida que me deram.

Chego às trincheiras e depois de um interrogatório e uma quase-conversa-normal, alguém dispara sobre mim. “És uma vadia, não tens vergonha?” Depois é um dois-para-um e tento-lhes explicar a minha incessante luta com o mundo, porque não lhes posso explicar que a minha luta é comigo mesma. “A sociedade prende-me as pernas e eu continuo. Luto mas saio. Se ficar em casa vou entrar em depressão”. “Enche-te de comprimidos outra vez e vai trabalhar para um supermercado”. “Tirar uma licenciatura e ir para um supermercado é desistir.” Eles querem que eu desista, eu levanto-me. Empurram-me. Quero sair. Não posso, não deixam. Quero fugir. Um estalo. Desespero. Um comprimido? Não há. Que ser enfermo que eu sou e que cura é esta, a violência sobre alguém decrépito na sua existência. Cobardia! É assim que me quero ir, entre lágrimas incontroláveis, soltar-me no ar e desintegrar-me no chão. Mas ainda conheço as formas da racionalidade. Do outro lado da porta oiço-a a rezar pela minha perdição. Soubesse ela qual é a minha verdadeira perdição…

Hoje não vou ser. Acordei para não ser, é demasiado difícil. Ajusto-me ao que pretendem de mim e faço uma distinta interpretação de mim própria. O mais curioso é que ninguém nota a minha desinspiração ao parecer um pouco do mundo que me envolve. É isso que querem e eu aceito isso com a mesma convicção com que ensaio um novo dia numa pele menos branca e solitária. A minha mãe berra qualquer coisa, enquanto come o almoço. Quais regras de etiqueta. Não existe disso em campo de batalha. Mas hoje faço parte deste mundo e faço conversa sobre uma notícia qualquer e um almoço saboroso da semana passada. Fala sobre trivialidades, actualidade e arrumações com a sapiência de quem estudou anos e anos o tema. Pena que vinte anos a estudar-me não lhe tenham servido de nada. Lavo a minha loiça – e a dela, como forma de manutenção da paz em terreno hostil – e saio para a rua em roupas coloridas. A cor para mostrar a resistência; sou um soldado do mundo com as marcas que a guerra da vida deixou em mim. E as dores de ser. Por isso escolhi não ser e hoje não me doem as costas, nem o pescoço, nem a cabeça. Talvez as pernas, no fim do dia, porque hoje vou correr. Libertar o suor de vingança e libertar um corpo que hoje não é meu. É da humanidade. Que faça o que quiser dele, porque eu já não quero saber. Ganha força sem a dar, é toda dele, para o meu bem. Planto a minha sola pelos caminhos que me guiam e a minha respiração coordena-se com o som dos sapatos a roçarem o alcatrão. Hoje exorcizo demónios: disseram-me que correr faz bem ao stress. Voo com os meus fantasmas ao lado, numa plataforma especialmente desenhada para quem a pisa com a raiva que os dias trazem. A minha mente viaja para outra dimensão nos sprints, no resto do tempo vivo na minha cabeça atormentada. Quero deixar de pensar. Paro. Quero fugir daqui e por mais que corra não saio do mesmo mundo. Levem-me daqui. Porra, já sou eu outra vez.

Chego à casa que dizem ser a minha. Quero riscar as paredes brancas do “meu” quarto, pegar na arrumação e lançar-lhe o caos, enquanto pontapeio tudo o que está perto. São apenas actos visuais; fecho a porta sem chave e o meu telefone toca. Perguntam-me se está tudo bem, ai a ironia! “Está tudo óptimo e por aí?” Querem que eu vá a Belém. “Parece-me bem, vou só vestir alguma coisa e ponho-me a caminho!”. Será que ninguém me conhece? Vivi outra tarde normal, no papel de uma rapariga aluada e divertida. Estava quase bem. Até darem a liberdade ao meu cérebro de me definhar mais um pouco. Estes são os meus dias e noites. A rir, a fumar e a ignorar o universo. 

quinta-feira, março 28

Antes fosse.


Raiva. Se o mundo nos faz humanos, se o mundo nos dá a cólera e nos enfurece contra ele mesmo, não tem autoridade para me julgar na minha desistência. Não pode encher-me de iras e desapontamentos e acreditar que vou seguir fielmente os padrões que criou para si mesmo, para mim e para nós. Não quero. Gostar, não gostar, ser indiferente. Antes fosse. Nojo de gostar. Ódio de sentir. Para quê? É sempre por demais, especialmente o fim, abarrotado em desilusões. O mundo que me explique qual é o prazer de alguém dar tudo, só para lhe poder tirar? Fazer alguém sentir tanto, tão perto da utopia da felicidade, só para lhe arrancar o único sentimento bom que conheceu em anos. Mas então não era real.
Há pessoas talhadas para não verem a luz e para acharem a sua cura fingida na escuridão. É obscuro, mas ao menos é real.
É o ódio de querer acreditar. É a ânsia de sair das mãos do alguém que nos rege nesta sociedade estereotipada com nenhum fim melhor do que sair sempre fodido desta vida.

“Sou feliz por preguiça”. Antes fosse.