1 – In media
res
O mais
intricado dos problemas é dar a conhecer o início. Como eu não sei onde começo,
abro esta página com um dia de sol no Jardim da Estrela, porque as pessoas
gostam de sol e jardins e pássaros no céu. Eu cá gosto de compreensão, coisa
que nunca se me deu a conhecer. Não entendo a vida, a sociedade, a arrumação, a
mente humana e principalmente a minha. Em conversas com algumas pessoas sinto,
por vezes, um breve entendimento pelo que elas passam ou foram passando na sua
estadia em Terra. Mas é uma demasiada complexidade que não tem forma de ser
partilhada, quando nem consegue ser explicada, porque a vida é uma prisão.
Gostam de apregoar sobre o amor e as suas virtudes. Eu não gosto de amor e
acredito que só o vou conhecer na forma pura - sem ser em molde de obsessão –
quando encontrar quem me leia por inteiro e me traduza. Mas o amor que eu
encontro é sempre cheio de códigos ou páginas brancas. Prefiro deitar-me na
relva com um cigarro e imaginar que os meus olhos são uma câmara de filmar,
porque a vida é mais bonita assim. Folhas pequeninas de um Jacarandá a
balancearem com o vento, enquanto que no pano de fundo as nuvens correm para o
seu destino. Ao menos elas têm um. Tomara eu que o meu destino fosse a
infinitude do Universo, ao menos teria um propósito maior do que viver porque é
suposto. Fico-me pelos jardins, mas já é hora de voltar à vida que me deram.
Chego às
trincheiras e depois de um interrogatório e uma quase-conversa-normal, alguém
dispara sobre mim. “És uma vadia, não tens vergonha?” Depois é um dois-para-um
e tento-lhes explicar a minha incessante luta com o mundo, porque não lhes
posso explicar que a minha luta é comigo mesma. “A sociedade prende-me as
pernas e eu continuo. Luto mas saio. Se ficar em casa vou entrar em depressão”.
“Enche-te de comprimidos outra vez e vai trabalhar para um supermercado”.
“Tirar uma licenciatura e ir para um supermercado é desistir.” Eles querem que
eu desista, eu levanto-me. Empurram-me. Quero sair. Não posso, não deixam.
Quero fugir. Um estalo. Desespero. Um comprimido? Não há. Que ser enfermo que
eu sou e que cura é esta, a violência sobre alguém decrépito na sua existência.
Cobardia! É assim que me quero ir, entre lágrimas incontroláveis, soltar-me no
ar e desintegrar-me no chão. Mas ainda conheço as formas da racionalidade. Do
outro lado da porta oiço-a a rezar pela minha perdição. Soubesse ela qual é a
minha verdadeira perdição…
Hoje não vou
ser. Acordei para não ser, é demasiado difícil. Ajusto-me ao que pretendem de
mim e faço uma distinta interpretação de mim própria. O mais curioso é que
ninguém nota a minha desinspiração ao parecer um pouco do mundo que me envolve.
É isso que querem e eu aceito isso com a mesma convicção com que ensaio um novo
dia numa pele menos branca e solitária. A minha mãe berra qualquer coisa,
enquanto come o almoço. Quais regras de etiqueta. Não existe disso em campo de
batalha. Mas hoje faço parte deste mundo e faço conversa sobre uma notícia
qualquer e um almoço saboroso da semana passada. Fala sobre trivialidades,
actualidade e arrumações com a sapiência de quem estudou anos e anos o tema.
Pena que vinte anos a estudar-me não lhe tenham servido de nada. Lavo a minha
loiça – e a dela, como forma de manutenção da paz em terreno hostil – e saio
para a rua em roupas coloridas. A cor para mostrar a resistência; sou um
soldado do mundo com as marcas que a guerra da vida deixou em mim. E as dores
de ser. Por isso escolhi não ser e hoje não me doem as costas, nem o pescoço,
nem a cabeça. Talvez as pernas, no fim do dia, porque hoje vou correr. Libertar
o suor de vingança e libertar um corpo que hoje não é meu. É da humanidade. Que
faça o que quiser dele, porque eu já não quero saber. Ganha força sem a dar, é
toda dele, para o meu bem. Planto a minha sola pelos caminhos que me guiam e a
minha respiração coordena-se com o som dos sapatos a roçarem o alcatrão. Hoje
exorcizo demónios: disseram-me que correr faz bem ao stress. Voo com os meus fantasmas ao lado, numa plataforma
especialmente desenhada para quem a pisa com a raiva que os dias trazem. A
minha mente viaja para outra dimensão nos sprints,
no resto do tempo vivo na minha cabeça atormentada. Quero deixar de pensar.
Paro. Quero fugir daqui e por mais que corra não saio do mesmo mundo. Levem-me
daqui. Porra, já sou eu outra vez.
Chego à casa
que dizem ser a minha. Quero riscar as paredes brancas do “meu” quarto, pegar
na arrumação e lançar-lhe o caos, enquanto pontapeio tudo o que está perto. São
apenas actos visuais; fecho a porta sem chave e o meu telefone toca. Perguntam-me
se está tudo bem, ai a ironia! “Está tudo óptimo e por aí?” Querem que eu vá a
Belém. “Parece-me bem, vou só vestir alguma coisa e ponho-me a caminho!”. Será
que ninguém me conhece? Vivi outra tarde normal, no papel de uma rapariga
aluada e divertida. Estava quase bem. Até darem a liberdade ao meu cérebro de
me definhar mais um pouco. Estes são os meus dias e noites. A rir, a fumar e a
ignorar o universo.